Memória ética seletiva. Li um texto sobre isso e fiz algumas considerações. Segue:
A memória para ser memória
precisa ser seletiva. Texto faz uma provocação, mas se ancora em uma das coisas
mais perversas contra a sociedade brasileira, que é fazer uma crítica aos
críticos da corrupção imputando um caráter corrupto à sociedade brasileira. Com
o absurdo argumento de que ninguém pode legitimamente criticar, porque todos em
maior ou menor escala cometem corrupção. Primeiro erro, esse trato ético
desconsidera o contexto ético histórico que compreende as motivações do acatar
ou não o valor e qual o grau de importância do mesmo. Nenhuma realidade
ética, fora da mera especulação do pensamento, cumpre o seu status ético sem
tensões, conflitos, sem alterar valores e, em boa parte, as mudanças decorrem
disso. Além disso, nunca existiu uma sociedade que todos realizem
determinados preceitos ou cumpra a obediência de um valor de forma idêntica.
Porém, existe o campo dos atos não aceitos, que correspondem ao que
seletivamente foi escolhido para ser repudiado. No entanto, é cruel
e falacioso colocar no nível da corrupção política e da coisa pública desvios
da norma que não correspondem à mesma grandeza e gravidade. Isso é como não
distinguir crime e contravenção, negligência administrativa de um homicídio. A
memória há de ser seletiva porque é necessária. O mais perverso é que querer
legitimar os crimes dos poderosos igualando toda a sociedade ao mesmo patamar
de delinquência. Isso é uma das piores visões elitistas, porque corresponde a
uma visão de que a massa é onde sempre estão os piores costumes e por isso um
grupo menor e mais apurado deve conduzir as coisas. O pensamento aristocrático
de Platão e Aristóteles residem nisso. Esse texto negligência sob um aspecto
fundamental, o espaço público e o que é próprio da política. Também ignora a
liberdade própria da democracia e a liberdade liberal. Vejamos. Na democracia
todos podem reclamar e emitir opinião independente da sua qualificação, se goza
de direito político pode, nada mais importa. E a liberdade consiste em que só
os cidadãos podem impor a si uma norma (soberania de deliberar), mas que cada
um viva a sua maneira. Na democracia estava divido o que é público e privado.
Por isso, é um tanto obscuro tentar julgar o cidadão por atos privados em
confrontação com atos de natureza totalmente pública (como é o vaso da
corrupção no aparelho de poder do Estado e da administração pública). Do
público e para público e todos podem reclamar. Temos também que ver o lado da
liberdade Liberal que diz respeito ao fato de não ter impedimento. Também é
liberal o fato do indivíduo individualmente ter direito. Ora, o Brasil é uma
sociedade profundamente hierarquizada, com distâncias sociais colossais e tal realidade tem componentes e fatores múltiplos de produção e manutenção. Toda vez que um pobre individualmente
reclama aquilo que se constitui um direito, o "coletivo" é
automaticamente lembrado, mas somente como mecanismo de manutenção da
hierarquias e distâncias sociais. Isto é, a defesa do público, do coletivo só é
evocada pelos segmentos sociais privilegiados quando isso implica em defender a
manutenção de privilégios e/ou como artifícios para assegurar a hierarquização
e os elementos simbólicos que necessitam para forjar sua superioridade ou maior
qualificação. Se a reivindicação do pobre (que é um direito) significa uma horizontalidade, isonomia e que lhe possa conferir simbolicamente ou materialmente uma igualdade (mesmos atributos e posses), ela é automaticamente desqualificada de alguma maneira, se não é por falha no ato formal, é por supostas imprecisões e inconsistências, há sempre um estatuto ou uma hermenêutica que possa barrar a pretensão e manter a ordem de privilégios e hierarquia. Os mesmos artifícios também são usados quando a reivindicação é de um par, de um amigo ou comparsa, mas com efeito diferente e logo esse indivíduo terá seu privilégio perpetuado mesmo que não tenha direito, tenha erros formais, que substantivamente não se sustente e que não passe de um ato de vaidade. Nesse último caso tudo se pode contra o patrimônio público, jamais tal ato vai ser visto como contra o interesse público e algo egoísta. Se é um pobre, um não igual a coisa muda e automaticamente o direito individual passa a ser irresponsável e
egoísta e um direito supostamente coletivo passa a ser enaltecido. A memória é
sim seletiva e deve ser. Por isso, os que não são os privilegiados devem ser
aguerridos na cobrança e lutar sempre para serem eles os definidores da seletividade
ética da memória. Por qual motivo? Pelo motivo simples e crucial da
democracia: ser a maioria.