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Código
Penal Brasileiro em vigor. Título VII - crimes contra a família, Capítulo I:
dos crimes contra o casamento.
O Código
Penal Brasileiro (CPB) há tempos está desconfigurado por sucessivos recortes de
legislações posteriores. Soam notícias que paira sobre nós um projeto de Novo
código penal. Tudo que se anuncia como novo no Brasil tem os nervos, as carnes
e o sangue da velhice. Pior que a velhice, da deterioração.
Esse
Código guarda uma pedra de imolação sobre o quesito Família. É isso mesmo.
O CPB traz no seu título VII a invocação
dos crimes contra a família. Não só isso, o capítulo I resolve enveredar pelo
casamento. Pois bem, até onde, do ponto de vista antropológico, sociológico e de
outros lógicos, a família está presa a casamento? A existência de família é
historicamente anterior ao casamento. Também é anterior ao casamento o elo
afetivo, o conjugar amoroso.
Então
temos de perguntar em que medida o CPB defende realmente a família? O que
verdadeiramente é nefasto à condição familiar em específico? O que há de
criminalmente culpável contra a família? Será mesmo matéria penal?
O
CPB está, nesse particular, defeituoso diante das normas-princípios e das
demais normas-regras.
O
CPB, em todo seu percurso normativo criminalizador em torno da defesa da
família, tem um alvo preferencial: a bigamia (ou a poligamia).
No
mais, tudo que esse estatuto trata sobre defesa de casamento não tem mais razão
de ser, e todos os prejuízos e danos produzidos por ações fraudulentas para
contrair matrimônio podem ser recepcionados ou inseridas no atual título I do
CPB, dos crimes contra a pessoa, capítulo V, dos crimes contra a honra. Basta
que sejam caracterizados como crimes contra a honra e sobre eles recaiam penas
de multas e indenizatórias. As indenizatórias seriam por danos morais às vítimas,
em particular, e as multas, aplicadas de forma independente, para indenizar a
sociedade como um todo, cabendo ao Estado a apropriação da importância
monetária, além recair, sobre o autor do ato, a pena de prestação de serviços
comunitários.
A
Constituição Federal é taxativa em afirmar a dimensão civil do casamento (art.
226, §1º), o que muito bem pode ser estendido como resguardo da vida privado e
proteção contra a estatização da vida. A norma-regra poderia assumir a condição
de defesa da vida afetiva privada. Nesse mesmo artigo, no §3º (união estável),
a norma maior reconhece a pluralidade conjugal para além do casamento. Não só
isso, a legislação aceita essa variação como formadora de entidade familiar.
É
pertinente ressaltar que o Estado já admite a condição homoparental. Ora, com isso
acaba admitindo mais uma modalidade de comunidade familiar que nasce de uma
modalidade diferenciada de casamento: a união civil. Essa tendência tende à resguardar
o caráter privado das opções afetivas. Isto é, espaço protegido da ação
estatal.
O
parágrafo sétimo, do artigo duzentos e vinte e seis, da CF/88 também assegura a
liberdade da comunidade familiar quanto ao seu planejamento. Afirmando, dessa
maneira, a dimensão privada das opções do casal.
No
tocante à segurança e à proteção, o §7º, do artigo 226, da CF/88 elege como
fundamento princípios da dignidade humana. Marco que explicitamente busca resguardar
a integridade dos indivíduos imersos em relações conjugais, afetivas e
parentais. No mesmo artigo o §8º enfaticamente se contrapõe às práticas de
violência no âmbito dessas relações.
Por
outro, o adultério deixou de ser crime, isso implica dizer que o casamento não
é fundado na exclusividade sexual. O sexo exclusivamente com o cônjuge como
falta deixou de ser da esfera estatal e passou a ser uma questão privada da pactualidade do casal. A exclusividade
sexual passou a ser um fato de viés meramente afetivo da responsabilidade
íntima. Cabe ao casal definir o grau de proibição ou de permissividade de tal
prática.
Ora,
se o fundamento patrimonial e biológico perdeu a condição de referencial para tipificar
a família no texto constitucional e nas normas-regras; se o Estado admite a
variedade de entidade familiar e de união afetiva/conjugal; se a regulação da
exclusividade sexual ficou restrita à intimidade pactual do casal; se o Estado
admite entidade familiar sem casamento; se inexiste o filho ilegítimo e há toda
uma legislação de proteção ao menor; se toda modalidade de união é resguardado
o direito de herança e sucessão, além de pensão alimentícia... qual seria o
real valor da criminalização da poligamia? Proteger as mulheres? Proteger a
prole? Ou é de cunho não laico?
O
Estado já reconheceu a dimensão privada, particular e íntima de relações e
comunidades afetivas. Toda a prole já se encontra resguarda nas normas-regras,
idem as mulheres. O casamento é firmado como civil, entende-se também laico. O
casamento de caráter religioso é reconhecido, mas não é estatal. O casamento
religioso é dimensão da normatividade religiosa e das convicções de fé.
A
poligamia não pode ser mais criminalizada, não pode constar como crime, se for fruto
da decisão e opção das partes. Isso é do campo privado das opções dos
indivíduos e não cabe o Estado, muito menos sua dimensão PENAL repressiva.
O
casamento deve ser reafirmado mais pelo viés da afetividade amorosa, da cooperação
voluntária e da solidária, e não ser resumido ao contrato econômico. A poligamia
consensual, válida para homens e mulheres) não fere a ordem social vigente.
Homens com mais de uma companheira e mulheres com mais de um companheiro é uma
realidade. Por que a afetividade tem que ser criminalizada?
Quem
não tem condições de amar mais de uma pessoa e nem de as atender aos mesmo
tempo, na forma de atenção, afetividade e companheirismo é só não se habilitar.
Não se lance a uma tarefa que não pode realizar. Perverso é querer manter a
monogamia através de um braço repressor, principalmente em um ambiente social
onde a exclusividade sexual já foi relativizada ou situada no âmbito privado
das opções dos casais.
O
que é conversado e acertado é digno e moralmente válido. Não é enganação, não é
hipocrisia, não é fingimento e muito menos promiscuidade.
O
CPB devia se focar em coisas mais da órbita pública, que tange a segurança, a
proteção e a coibição da violência. Por exemplo, relativizar a proporcionalidade
na legitima defesa quando se tratar de proteger o lar e a família. O cidadão de
bem não pode ser colocado no mesmo patamar que um facínora que invade sua casa
com o objetivo inequívoco de cometer violência contra as pessoas lá residentes
e cometer danos aos seus bens. Nesses casos a legitima defesa não pode ficar
condicionada à proporcionalidade dos meios.
No
novo CPB deve ser garantido ao cidadão a legítima defesa por qualquer meio e em
qualquer quantidade. É isso que deve tratar o CPB, é contra essa gente perversa
e criminosa que o CPB deve se posicionar, e não contra as possibilidades do
amor e da afetividade. O amor múltiplo é só amor.