A noite de São Bernardo é um momento significativo enquanto prosseguimento do processo de democratização. A nossa redemocratização têm pendências e reformas inconclusas. Ela tem sido prolongada sem perspectiva de desfecho, o que põe o pouco de democracia que construímos a partir de 1985 em risco. E nada melhor para o momento do que distinguir mito e realidade, além de despersonificar as causas sociais. Causas políticas não podem ter donos e nem ficarem presas a heróis.
Lula não é uma grande vítima de tudo e de todos. Por outro lado, é notório que o tratamento dado a Lula foi diferenciado tanto para bem quanto para o mal. Cabe lembrar o conceito de "cidadão incomum" criado pelo próprio Lula.
Por que Lula não é uma grande vítima de um grande complô? Porque Lula em maior parte é vítima de si mesmo e algoz de diversos segmentos e movimentos sociais que lutam por justiça como equidade, reconhecimento de direitos, afirmação da pluralidade, ampliação dos valores vitais de democracia e república. Lula assumiu integralmente, em sua encarnação burguesa, o ethos "político" do empresariado e da classe política tradicional brasileira. Tanto a origem "Silva" como o lastro de apoiadores "Silva" passaram a uma condição secundária e pretérita no momento que Lula assumiu o poder. Lula estava lá e queria ser a alma do establishment. Nisso Lula é vítima de si mesmo, não de uma ampla conspiração.
Por outro lado, Lula não é só vítima de si, sua adesão integral ao status quo fez dele também um produtor de vítimas, particularmente quando impregnou todos os movimentos sociais populares da nódoa dos seus descaminhos, caracterizado por uma série longa e volumosa de escândalos (Mensalão e Petrolão) envolvendo crimes contra o patrimônio público, onde os beneficiados, segundo a justiça, foram grandes empresas e os esquemas partidários de caixa 2. A adesão total ao governo do PT por parte dos líderes do movimentos socais e sindicais só serviu para acelerar o governo PT e o Lula em uma direção de não aceitação à crítica e revisão de postura. Isso contribuiu, em parte, com essa tragédia partidária/política e, ao passo que Lula e o PT perdiam credibilidade, os movimentos sociais e as organizações sindicais foram sendo afetadas pelo mesmo processo de descredibilização e criminalização. O que tem culminado com diversos tipos de intolerância frente às reivindicações legítimas de diversos dos movimentos sociais, muitos dos quais sem qualquer alinhamento direto ao PT.
Lula e a cúpula do PT, através de ações conscientes e não-inevitáveis construíram um formato de aliança corrosivo, anti-democrático e antipopular. Resultado: o PT ficou treze anos no poder sem uma agenda de reformas, sem implementar nenhuma mudança real e qualitativa na arena política. Não foi pedagógico e nem inovador no exercício do poder. Em nada ousou e nem respondeu às necessidades de reforma tributária e fiscal, educacional, política etc. O que se viu é que os bancos lucraram sem limites com juros absurdos, isenções fiscais, renuncias fiscais para grandes empresas. O PT e Lula tentaram justificar a tudo isso com a nuvem da governabilidade. Logo tudo se explicava por força de um suposto presidencialismo de coalização. O conceito mesmo de presidencialismo de coalizão já pouco explicativo e nunca verificado em confronto com a realidade, nunca passou por uma exigência demonstrativa. As coalizões são típicas de sistemas Parlamentaristas, a constituinte que deu feitura à Constituição de 1988 era povoada de parlamentaristas e tentaram fazer uma constituição que recepcionasse um sistema parlamentarista de governo que, como sabemos, foi amplamente rejeitado em plebiscito. O produto da CF de 1988 não é um desastroso sistema semi-parlamentarista? No fundo a tal governabilidade e o presidencialismo de coalizão nas mãos do PT nada mais foram que álibis para um projeto de se perpetuar no poder só pelo poder, sem nenhum projeto verdadeiramente de transformação social. O resultado imediato após os escândalos de corrupção foi que todos os movimentos populares foram dragados para tiveram suas imagens coladas a bandidagem. Logo tudo ficou "igualzinho" diante dos olhos da maioria da população brasileira.
No momento em que começa a ser revelado esse esquema empresarial-partidário de pilhagem do Estado o PT já estava com uma outra sistemática de deliberação interna, outro tipo de funcionamento interno, já era grande e rico. Enfim, já era outro PT. O poder internamente no partido já estava extremamente verticalizado, concentrado na cúpula. O PT que emerge desse processo o Zé Dirceu reinava absoluto e, sob seus pés, jaz enterrada a tal democracia de base petista.
Depois que toda essa engenharia de poder pelo poder ruiu, as frações mais reacionária e intolerante da sociedade brasileira ganharam voz, até reaparecer uma voz com rouquidão ecoarem do fundo da caserna em nome da democracia. Lula e a cúpula do PT também são os criadores das condições para as velhas sombras terem condições de se auto-projetarem no presente. Esse segmento de extrema direita estava sufocado desde a redemocratização e, durante os momentos de sucesso econômico do governo-PT, viu-se proticamente decomposta e engessada para sempre. Mais seus sentimentos permaneciam vivos e com todo vigor. Logo que tiveram uma chance expressaram seus sentimentos seculares contra pobres, negros, mulheres, índios etc. na mente dessa gente haviam o incômodo dos pobres estarem felizes demais, com direitos demais, facilidade demais para entrarem nas universidades etc. A verdade é que os pobres e os mais injustiçados nunca chegaram a tal paraíso nos governo petista, a alta de acesso ao consumo era um feito geral do aquecimento econômico pela alta dos lucros com commodities.
A verdade é que a ojeriza e a insensibilidade desses segmentos reacionários para com os pobres e menos favorecidos estava mais viva do que nunca e tudo que lhes faltava era um fato para ganharem espaço. Eis que Lula, Dirceu etc. lhes deram de graça e de forma volumosa o combustível que precisavam. Esses segmentos reacionários são minoritários, mas soube ser hábil de pegar carona nos movimentos de múltiplos descontentamentos e principalmente o medo de quebradeira econômica com inflação alta. cabe ressaltar, contra o reducionismo do PT, que a grande maioria dos que criticam e criticaram, protestaram e protestam contra Lula e o PT fazem parte de segmentos muito heterogêneos, portanto é um equívoco considerar que todos são adeptos de golpe militar. O que também serve de alívio para os que querem uma saída e melhorar nossas instituições por uma via não ditatorial.
O PT errou em não querer ver isso e em não saber tratar com manifestações contrárias, principalmente em 2013. Isso fez com que as acusações de crimes ganhassem mais força e mais importância, na medida que o PT se mostrava intolerante às críticas e incapaz de rever posição e assumir algumas demandas da voz que vinha das ruas. Isso foi mais uma facilitação para os reacionários, pois cada vez mais ficou parecendo que eles tinham acertado no diagnóstico e que tinham legitimidade para fazer a prescrição da solução. A insatisfação e o desencanto com o PT e com o Lula está muito além dos coxinhas e dos reacionários intolerantes com fobia a pobres e a tudo que não é igual a eles.
Quando tudo começou a desmoronar o PT e Lula apostaram que a saída era criar inimigos: conspiração da CIA, ódio da classe média branca etc. Todo mundo agia de má fé e eles sob uma total injustiça do mundo. Isso não funcionou, a maior parte da opinião pública não aceitou tais explicações causais. Ao lado disso, os ataques constantes constante aos adversários via internet não surtiram o efeito esperado, não só não conseguiu silenciar os adversários como também não fez a maior parte da sociedade aderir ás suas versões e opiniões. Ao contrário disso, esse sistemático enfrentamento pela internet alimentou uma continuada e efetiva rivalidade nas redes sociais, produzindo um efeito devastador de manter os supostos crimes do PT sempre em pauta e em grande volume de postagem. Ao passo que as delações e as prisões iam ocorrendo, o discurso e a imagem do PT construída nos tempos de oposição, quando bradava por ética na política, foram se dissolvendo no ar, o discurso do passado virou fardo. Melancolicamente o PT acabou assumindo o discurso que os outros era todos assim, que não tinham sido os primeiros e que tais coisas já existiam nos governos anteriores e que tudo era um golpe da "direita" (não custa repetir que tudo que existe de pior na vida político partidária brasileiro controlou ministérios no governo PT).
Na noite de São Bernado, apareceu no discurso de Lula uma expressão emblemática: "eu não sou eu". É nitidamente um artifício retórico, mas também é um reconhecimento tardio, e conclamação infértil. Lula não possui mais a massa de adeptos que pensar ter. Onde ele chegou e como chegou não fruto só do seu esforço e talento pessoal. Nunca foi obra de um, mas um esforço continuado de muitos. Quem eram, em geral, os apoiadores de Lula que ali estavam? Com certeza ali não estavam a grande maioria dos muitos de outrora, mas o grosso do séquito lulista cumprindo seu ato de devoção, portanto, um ato religioso de fidelidade ao "homem" divinizado: ato explícito de "política" longe da Política, pois o culto ao herói reflete a pobreza de personificação da causa e de ideais. A luta virou a luta pelo que resta do Lula mito. O Lula real é um senhor idoso, sem forças para fugir para o Uruguai, sem condições físicas para ficar entrincheirado no sindicato por dias a fio e encabeçar uma ruidosa desobediência civil. Por outro lado, o mito não pode ser preso, tampouco a cadeia vai matar o Lula político.
O que a noite a Noite de São Bernado produziu? Impossível dizer agora todas as suas consequências. Mas o que a possibilitou foi um movimento do Moro não muito acertado no seu famoso "se entregar até às 17 horas". O que poderia ser a jogada para o PT e Lula se afundar mais, foi se deslocando como uma desmoralização para a polícia e o judiciário logo que passou as 17 horas do dia previsto. Não só isso, tudo que se seguiu assumiu um ar contrário à forma do mandado de prisão. O tratamento dado a Lula realmente foi diferente, mas não foi só pela celeridade do processo e a suposta inconsistência das provas. Foi diferenciado também porque Lula recebeu uma cela que não é cela e ele próprio definiu a hora de se entregar e como se entregar. A prisão virou catarse para prós e contras. Êxtase, delírios, performances, dramas, selfie etc. tinha um pouco de tudo sob as lentes das câmeras e tudo ao vivo e on-line.
Diante do placar de 6 X 5 no STF e da disponibilidade de inúmeros recursos, será que Lula fica preso mais de 6 meses? Será que teremos o inusitado fato de termos um candidato à Presidência da República por força de uma liminar conseguida junto ao TSE? Tudo parece possível quanto mais impossível é. Será Lula um sujeito que se encaixe no seu conceito de "cidadão incomum"?
Parece mais provável que sem Lula e o PT na disputa eleitoral à Presidência haja uma pulverização dos votos por força da grande quantidade de candidatos que não são de extrema-direita. Uma candidatura de extrema direita chegar ao 2º turno é mais provável por força da pulverização dos votos e não pela ausência do Lula. É muito provável que a saída de Lula da disputa eleitoral deixe a extrema direita sem sua principal bandeira até agora, sem seu mote e seu principal apelo ao eleitoral indignado: o anti-Lulismo e o anti-petismo. A extrema direita não tem o monopólio da luta anti-corrupção, nem encabeçou isso. Para ter algum êxito eleitoral sem o Lula na disputa, a extrema direita vai ter que apresentar outras propostas para além de liberação de uso de armas pelos cidadãos e convencer os anti-Lula e anti-PT que todas as outras candidaturas são lulistas.
Quanto à prisão de Lula, não vejo a prisão como a pena mais eficaz para esse tipo de caso. A pena deveria ser a perda de direitos políticos (inelegibilidade) seguida de confisco de bens. Existe previsão legal para que a pena seja desse jeito em tais casos penais? Suponho que não haja. Mas também não existe impeachment sem perda de direitos políticos no textos legais, mas a Dilma não perdeu os seus direitos políticos, assim como não existe previsão de "sala de Estado Maior" para ex-Presidente. Por outro lado, Azeredo continua solto, mesmo já tendo condenação em segunda instância. Já que tudo se tornou possível tendo ou não lei nesse nosso Estado de Direito Democrático Constitucional, que seja feito logo algo que impeça todos nós de mergulharmos em uma loucura total e tudo virar um exercício de múltiplas violências.