domingo, junho 02, 2013

Na estrada com Elias


Na estrada com Elias. Encontrei esse flamboyant vermelho na BR 135, próximo da Fazenda São José. Olhei essa árvore e um belo arquivo da minha memória foi ativado. Certa vez resolvi ir de Ribeirão Preto a Salvador de ônibus. Verifiquei o trajeto em um mapa e tudo pareceu perto e sem demora. Concluí: uma viagem fácil e rápida. A minha mente ficou povoada de curiosidades sobre as paisagens do sul da Bahia e do interior de Minas. Ainda mais que estava de posse de uma câmera fotográfica monoreflex, SLR 35 mm da marca Zenit.  Pois bem... eis que a hora da viagem chegou e na plataforma estaciona um ônibus nada igual ao que aparecia na propaganda da empresa. Logo em seguida vi que as pilhas de caixas e malas que estavam na plataforma, sem nenhuma restrição, foram lançadas nos bagageiros do ônibus. Só o ato de carregar os bagageiros garantiu, logo no início, um atraso. 
Quinze minutos depois e as malas, pacotes etc. ainda não estavam todos acomodados no bagageiros.  Uma multidão de cidadãos na porta do ônibus, todas ávidas para pegar o seu lugar. Os passageiros começam a entrar no ônibus... grudados aos seus corpos mais sacolas, bolsas, rádio-cassete-cd e um imponente  poodle branca, um contraste diante das faces queimadas de sol. Fiquei hesitando, pensando em desistir da viagem. Respirei e comecei a pensar no lindo mar de Salvador, na enseada perto do Farol da Barra e em Amaralina, Mercado Modelo, Pelourinho e os shoppings, os shoppings sim. 
Saí procurando a cadeira trinta e alguma coisa... O bagageiro superior estava abarrotado de coisa, uma sacola laranja de napa se destacava... Sentei do lado da janela... Do meu lado uma senhora com seus mais de 60 anos de guerra, cabelos já brancos. A vizinhança estava composta pela dona do poodle, ao lado, na frente o dono do rádio+cassete+cd, na poltrona atrás tinha uma senhora deitada ocupando as duas poltronas. 
Motorista deu partida e teve início a odisseia desse negro-índio-cristão novo-pardo. Som rolando, poodle agitado e um turbilhão de conversas. 
Tempos depois a senhora que estava do meu lado desceu em uma cidadezinha, em Minas, fiquei só e de posse das duas poltronas. Deitei, tentando dormi, mas não consegui. Fiquei lá quieto ouvindo as histórias. A viagem foi isso as pessoas iam relatando suas vidas uns para os outros: os empregos, as dificuldades, os lances de sorte etc. Um senhor, que estava sentado na parte dianteira do ônibus passou periodicamente a ir conversar com a dona do poodle e assim foi se entrosando com todos, contava piada, cantava. No início da noite ele já era conhecido de todos. O som rolando axé ou algo assim. na madrugada a discotecagem passou ao comando desse senhor contador de piadas. Cada canção mais melancólica do que a outra... Abri meu kit-sobrevivência: bolachas recheadas e maças e comecei a enganar o estômago. Já bem tarde ... o ônibus começou a cair em buracos, trepidação infernal. Começa uma chuva de coisas sobre a minha cabeça: saboneteira, um vidro de desodorante de Rastro, uma escova de cabelo.. Por fim caiu a sacola laranja de napa. 
Cansaço, desconforto e sono. Cochilava e despertava sucessivas vezes. Algumas pessoas resolveram fumar dentro do banheiro, o odor do cigarro tomou conta do ônibus. Abri a janela e fiquei olhando para as estrelas. O rádio do cara continuava ligado. Terminei mais um pacote de bolacha. Foi amanhecendo e  pude ver o sertão... a imensa caatinga, as elevações do terreno, as casas. O ônibus foi, aos poucos, esvaziando. Cada um que descia deixa sua saudação de boa sorte. Pequeno vilarejos, casinhas solitárias em meio à imensidão de galhos secos e pedras. 
O céu azul, bem azul, dia claro...o ônibus avançava rumo a Salvador, que para mim já era também salvação. Peguei o livro "O que é sociologia" de Norbert Elias e comecei a ler calmamente... Fiquei refletindo sobre o conceito de configuração. Em um instante olhei para o lado e vi bem ao longe uma casinha branca com um flamboyant vermelho florido ao lado... O Branco da casa e o vermelho das flores destoavam excessivamente do cenário. Aquele lugar estava resumido a galhos secos retorcidos, sem nenhum verde, nenhuma cor... O ônibus foi descendo a ladeira e fui perdendo de vista a casa e o flamboyant. A partir daí batizei a viagem de Na estrada com Elias. 
Comi a última maça e pensei em jejuar até Salvador. A ansiedade já tão grande que pensei que Vitória da Conquista já era um bairro de Salvador. Não era um bairro da capital baiana e para piorar Salvador ainda estava longe. 
O poodle ficou em algum lugar entre Vitória da Conquista e Feira de Santana, ficou em um local onde a solidão e o abandono possuem um endereço aparentemente fixo. Imaginei aquele poodle na caatinga, descendo do altar dos braços de sua dona e ficando face-a-face com um cacto. Sua dona deve ter entrado nas histórias locais com a hipertrofia das impressões sobre sua conquista urbana: o poodle. Muito provavelmente foi pioneira local na tentativa de transplantar um status aparente a partir de poodle.
Desta maneira vivi quase mil e novecentos quilômetros dentro de um ônibus. Viagem que se prolongou por trinta horas, seis horas a mais do que eu esperava. 
 "Por configuração entendemos o padrão mutável criado pelo conjunto dos jogadores - não só pelos seus intelectos mas pelo que eles são no seu todo, a totalidade das suas ações nas relações que sustentam uns com os outros. Podemos ver que esta configuração forma um entrançado flexível de tensões. A interdependência de aliados ou de adversários." (N. Elias)

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